A
GOTA D'AGUA!
Numa linda manhã de
sol, ao sair para o jardim de minha casa vi pousada displicentemente em uma
folha da roseira mais alta, uma gota de água incomum. Seu brilho era tão
intenso que precisei acostumar meus olhos a seu esplendor. Enquanto olhava,
mais admirada ficava com o brilho que dela emanava. Embevecida, continuei ali a
olhar para ela enquanto os minutos passavam.
Os raios de sol
batendo em cheio naquela gota de orvalho, refletindo um lindo arco-íris,
faziam-me pensar em prismas de cristais. Havia
algo de mágico naquele lindo pingo d'água.
Prestando
melhor atenção, percebi que a seu lado uma margarida pedia com insistência para
que ela caísse em suas pétalas para aliviar a sua sede. Do outro lado, uma rosa
cheia de perfume, dengosa implorava seu frescor.
Com o
calor do sol aumentando, conforme os minutos passavam, todo o jardim ficava
sedento. Então, quase em coro, as flores pediam para aquela maravilhosa gota
d'água que lhes amenizasse a sede. No entanto, a bela e inatingível maravilha da
natureza, ali ficava imóvel e silenciosa, não dando atenção aos apelos sedentos
da população do jardim.
Uma senhora idosa que por
ali passava, parou para olhar o belo jardim, e vendo a linda gota d'água
pousada naquela folha, ficou por uns momentos a olhar os reflexos coloridos que
cintilavam ao sol. Olhava e olhava! Mas a sede foi maior. Então, com carinho
tomou em suas mãos a folha que servia de apoio para o repouso daquele pingo
d'água, e quase com reverência a levou aos lábios secos. Fechou os olhos, e parecia
fazer uma oração em agradecimento pela dádiva. Depois disso, a senhora retomou
seu caminho, levando nas faces um sorriso diferente, como se a felicidade a
visitasse de repente.
Vendo a
cena, fiquei imaginando, que aquela misteriosa e linda gota d'água, tendo
pousado em meu jardim por pura obra divina, e depois de se negar a matar a sede
das mais lindas flores, dignou-se a deixar alegre e feliz uma simples pessoa na rua.
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INVERNO NO CORAÇÃO
Naquela manhã particularmente fria do mês de Julho, saí para o trabalho dentro de um pacote de roupas razoável. O frio era realmente enregelante e fazia todos saírem de casa tiritando. Apesar do gelo Porto Alegre estava uma lindeza. Céu azul puríssimo sem nenhuma nuvem e nem riscos, um sol aparecendo medroso, mas radiante, que alegrava os corações. É claro que o carro não funcionou e precisei ir a pé ao trabalho. De minha casa ao prédio onde ficava meu escritório era bem longe. Por isso apressei o passo e segui cortando caminho por praças e ruelas. Em frente o prédio de meu destino havia uma praça muito bonita. Sempre que podia ficava na janela de minha sala que ficava no décimo andar, olhando para ela. De cima parecia mais bonita ainda, porque os vislumbres de vida eram feitos por entre as copas das frondosas árvores que no verão davam uma sombra deliciosa. Mas agora no inverno era melhor contorná-las, o sol bonito, mas pálido, não dava calor suficiente para aquecer a quem passasse por baixo delas. Então fui pelas calçadas laterais o que percebi ter sido a decisão de todos que precisaram fazer o mesmo trajeto. Quando cheguei, precisei esperar alguns poucos carros dos felizardos que conseguiram fazer os motores funcionarem apesar do frio. Parei minha caminhada e fiquei olhando para os lados até poder atravessar a rua com segurança. Senti em meu braço uma mão que segurou com delicadeza.
Que susto! Instintivamente pulei para o lado e quase disse um palavrão. Mas era apenas um dos funcionários que também trabalhava no mesmo andar do prédio que eu. Reconheci sua fisionomia, mas não atinei com seu nome.
- Homem! Que Susto! – falei quase gritando.
- Guria! Nem tanto! Só quis lhe dar bom dia!
- Ah! Bom dia! É melhor aproveitarmos que os carros pararam.
E seguimos contornando os veículos. Ao chegarmos do outro lado continuamos juntos, mas mudos. No elevador ele disse:
- Tem algo para fazer hoje à noite?
Fiquei surpresa com a pergunta. Não éramos muito chegados, e apesar de nos vermos muitas vezes durante o dia, raramente conversávamos.
- Nada importante – respondi - comer um sanduíche, tomar um copo de leite, ver algum filme e dormir. Por que a pergunta?
- Recebi uma coleção de filmes históricos de minha irmã que mora no Rio de Janeiro, e gostaria de ter alguém como você, inteligente e pesquisadora para assistir comigo.
Dei um sorriso, mas não respondi logo. As portas do elevador abriram-se e saímos para o corredor já movimentado embora fosse bem cedo ainda.
- Então? Que me diz? – tornou ele.
Parei de andar e fitei o colega de trabalho, conhecido por vê-lo todo dia durante dois anos, mas que nem sabia seu nome. Então fiz a pergunta que selou nossas vidas:
- Como é seu nome?
Ele começou a rir, a rir muito, e o riso foi contagiante porque também passei a rir com ele. E ficamos os dois ali rindo e nos olhando até alguém perguntar qual era a piada tão boa. Estendeu a mão e apresentou-se galhofando:
- João Maria. Mas o pessoal de meu setor me chama de Joanim. Nem sei por quê. Não me pergunte.
Tomei sua mão e perguntei:
- Sabe meu nome?
- Claro. Faz já um bom tempo que tento lhe convidar para alguma coisa, como por exemplo, tomar um chá, comer uma torta, mas nunca me atrevi. Você nunca me deu chance.
Parados ali no corredor nessa conversa, deduzi que precisávamos falar mais a vontade, então propus:
- Vamos almoçar juntos hoje, e aí veremos no que dá.
- Ok! Faremos isso sim! Saímos às doze horas então.
Ele rodopiou nos calcanhares, deu um adeusinho com a mão e entrou em sua sala. A manhã passou rapidinha porque tinha montanhas de trabalho a fazer, e o frio sempre me convida a ser mais produtiva. Quando percebi alguém batendo de leve na porta, olhei para o relógio na parede e vi que era hora do almoço.
Vamos?
Saímos para a rua que já estava bem movimentada porque o frio amainara e o sol já aquecia. Fomos andando até o restaurante que ficava do outro lado da praça.
- Você nem sabe o quanto estou feliz por me convidar para esse almoço. – disse ele
- Ora! Fui convidada para assistir uns filmes em sua casa. Embora o conheça, este conhecimento é muito superficial. E para falar a verdade estou bem tentada a aceitar seu convite, pois gosto de filmes históricos, principalmente se são bem antigos.
- Então você vai gostar destes. São todos de histórias quase imemoriais. – e riu.
Ri também e isso selou nossa camaradagem, porque ficamos conversando até bem além do nosso horário, e quando chegamos estávamos os dois muito animados e felizes. Após o expediente saímos juntos e fomos até a casa dele para vermos os filmes. Desse dia em diante ficamos companheiros inseparáveis. Ele demonstrou ser um perfeito cavalheiro, agradável companhia e uma pessoa confiável. Quando foi que passou a ser namoro nenhum de nós sabe dizer. Só sei que quando percebemos estávamos marcando a data do casamento. Os preparativos duraram muito pouco tempo, porque não tínhamos muitas pessoas a convidar. Nem ele e nem eu. Parentes alguns poucos, amigos menos ainda. Só aí foi que percebemos: nós dois éramos pessoas isoladas do mundo. Com todas as letras. O dia do casamento chegou e os poucos convidados e parentes não ocupavam nem um quarto da pequena capela em que a cerimônia foi encomendada. Casamos. Quando a festa acabou fomos para o pequeno apartamento no qual decidimos morar. Era bem pequeno, mas aconchegante e agradável. Assim, sem lua de mel nem nada especial, nossa vida a dois começou.
Passaram-se onze meses.
Um dia percebi Joanim falando ao telefone com alguém e sua voz estava diferente. Mostrava alguma preocupação. Perguntei o que era, mas ele desconversou e me tomou nos braços, ergueu-me do chão e disse:
- Vamos fazer nossa lua de mel. Iremos a Cancun.
- Credo! A Cancun? Assim sem mais nem menos?
- É! Iremos neste final de semana.
Comecei a rir feliz pela notícia, mas sempre muito prática em tudo que faço em minha vida, perguntei:
- E dinheiro? Como faremos?
- Gastarei todas as economias de minha vida. Você merece. Minha esposa que eu amo mais que tudo.
Pensei que ainda éramos jovens e poderíamos economizar novamente, e na verdade a vida deve ser curtida quando se tem vontade. E dinheiro não é tudo, a felicidade sim. Viajamos. Em Cancum tivemos dias maravilhosos. No entanto percebi que Joanim ficava cada dia mais triste e cabisbaixo. No jantar da última noite de nossa estada, jantar oferecido pelo hotel aos hóspedes de partida, Joanim estava mais triste ainda. Cheguei-me a ele carinhosamente e perguntei:
- Meu amor, porque está tão triste?
Ele sobressaltou-se com a pergunta. Olhou para o mar que quebrava na praia e disse:
- Minha adorada! Está enganada. Estou muito feliz por estar aqui a seu lado, curtindo este mar, estas estrelas, este céu tão especial.
Mas enquanto ele falava, notei suas faces pálidas e as olheiras que eram sua característica, e às quais já havia acostumado, estavam profundas e muito mais escuras que o normal. Embora os lábios sorrissem, os olhos tinham uma expressão de dor que não havia notado antes. Ele puxou-me para a praia em frente e enquanto caminhávamos, abraçava-me forte e seus lábios não paravam de beijar o alto de minha cabeça. Paramos a olhar o mar que ia e vinha derramando espuma na areia. Sentamos na areia molhada e seu abraço foi tão carinhoso e suave que me deixou sem fala. Seus olhos fixaram-se nos meus e ele disse:
- Querida! O mundo me reservou quase um ano da mais perfeita felicidade a seu lado. Sou imensamente feliz mesmo!
- Eu também!
- Que bom! Mas tenho algo a dizer, e não quero que fique triste, nem um pouco mesmo.
Calou-se por algum tempo, mas continuou.
- Há três semanas recebi a notícia de meu médico que estou muito doente.
Meus olhos ficaram arregalados. Doente? Eu no meu egoísmo feliz não notei que o mais perfeito homem do mundo estava doente?
- Não fique assim! Seus olhos não podem entristecer. Desde criança que tenho problemas com saúde, e agora meu organismo entrega-se a seu destino. Tenho apenas alguns dias de vida e por este motivo trouxe-a para este passeio. Quero que guarde em seu coração estes momentos que aqui passou comigo. Espero que sejam boas lembranças. De felicidade e não de tristezas. Combinado?
Fiquei arrasada. Chorei muito. Mas ele pediu-me:
- Nunca chore por mim. Nunca fique triste ao meu lado. Já basta a dor que sinto pela doença e por ter de deixá-la. Seja forte como sempre. É só o que lhe peço.
Prometi. No dia seguinte voltamos para casa. Precisei de todas minhas forças para levar a vida normal, sabendo que meu doce marido se deteriorava por dentro e me deixaria em breve. Mas não falava nem comentava nada com ele. Agia como se a vida estivesse tão linda como sempre. Era o combinado. E chegou o dia. Ele estava trabalhando normalmente de repente desmaiou. Os colegas me chamaram e o levamos ao hospital. Só para cumprir protocolos, porque na verdade tudo estava acontecendo como o esperado pelos médicos. Tomando minha mão nas suas ele disse:
- Perdoe-me! Gostaria de ficar mais tempo com você!
E faleceu. Chorei tudo o que não pude chorar enquanto ele estava vivo, pois havia prometido não chorar. Mas agora podia deixar sair o sofrimento. Os poucos parentes e amigos chegavam devagar. Eu olhava pela janela do quarto do hospital. Lá fora era inverno novamente. Há dois anos era inverno também naquela praça onde sua mão tocou meu braço suavemente.
Agora era inverno também em meu coração.
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CORAÇÃO VENCIDO
Existiu um coração que vivia feliz, saltitando alegre ao ouvir os passos de seu dono. O sangue que lhe alimentava, transbordava de amor e carinho, e o sorriso de seu dono lhe dava ânimo para enfrentar todos os tapas e empurrões que lhe eram dados pela vida.
Mesmo em seu canto mais escondido, onde alguns o colocavam às vezes, bastava o olhar e a mão do dono estendida para a alegria voltar.
Anos a fio esse coração esteve assim, vermelho na felicidade de poder dar e receber amor.
Mas, um dia, esse coração sofreu um acidente emocional muito grave, ficando com lesões e escoriações profundas, causados pela mágoa e a dor.
Durante meses, recebendo apenas alguns tratamentos paliativos que lhe eram atribuídos por seu dono, o pobre coração definhou.
Em alguns dias seu dono lhe estalava os dedos, ele com timidez, mas feliz, aproximava-se para receber o afago, e logo após era novamente repelido para o canto escuro que lhe foi destinado. Assim, nesse vai e vem, com dores arrasadoras, o coração foi ficando cada vez mais enfermo. Até que um dia o pobre coração foi abandonado a seu cruel destino, enfermo, quase soçobrando, a perambular pela rua da tristeza, deixando as feridas aprofundarem-se a cada dia, porque a mágoa e a dor eram renovadas a todo momento, pelo abandono e o descaso.
Durante meses, ora aceitando o alimento doado por seres compadecidos, ora sonolento pelos cantos sombrios, o coração sobreviveu às dores.
No entanto, tudo tem um limite. E um dia, encontrado desfalecido por alguém caridoso, o coração foi levado para se tentar um tratamento recuperador.
Mas, a mágoa, doença terrível, e a dor constante, já haviam causado danos irreversíveis ao pobre coração. Então o profissional ao olhar para o azul daquele coração, disse: a infecção está generalizada, e esse coração está com total falência de órgãos. Nada mais posso fazer.
E aquele coração, que havia sido vermelho na felicidade de viver, cor de rosa na alegria de dar amor, morre ao ficar azul na dor e na tristeza do abandono.
A mágoa o havia destruído.
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Sabedoria da velhice
Seu Juventino era meu vizinho de apartamento. Era, porque faleceu. Sua única filha, solteira por opção, trabalhava fora o dia todo, e sua esposa, dona Norma, é quem ficava com a obrigação de cuidar do homem que no passado fora um empertigado militar, mas que devido a um câncer no cérebro deitou-se um dia e não conseguiu mais levantar. Quando dona Norma saía para o mercado, vinha até minha porta e pedia: ‘pode olhar o Juventino um pouco?’ Era uma mulher admirável, essa senhora. Em cima de seus setenta anos era mais forte que qualquer um. Em corpo e espírito.
Quando eu chegava para ‘olhar’ o doente, sentava a seu lado e ele, ainda muito lúcido apesar das dores, desfiava a falar e falar, quase um monólogo. Eu o deixava ir em seus devaneios de doente, que não tem muito com quem conversar.
Uma das coisas que Seu Juventino gostava de repetir era, que os velhos como ele, a cada dia deteriora algo em seu corpo. Toda manhã percebia alguma coisa deixando de funcionar direito. É claro que a maior parte de seus infortúnios, era pela doença. Mas uma parte deles pela velhice e inanição. ‘E o pior é que as pessoas acostumam com isso’, ele dizia. Um dia um zumbido no ouvido, outro uma dor no joelho, e às vezes até surdez. Vão perdendo a audição devagarzinho, e quando dão por si estão surdos e nem sabem como foi. A cegueira também. ‘Já vi muito velho cego e surdo e nem sabe que é’, ele falava quase sussurrando. Eu ria, um riso sem jeito, penalizada com suas conversas, mas tenho que admitir ser a pura verdade. Velho não gosta de ser velho. Mulher então! Nem pensar! Depois que faz quarenta, se esquece de fazer aniversário pelo resto da vida. Pelo menos a maioria delas.
Agora, verdade seja dita, não acontece só com os velhos não. A pessoa entra na cozinha para fazer alguma coisa e esquece. Aí lembra que tem de fazer algo na sala, só que quando chega lá não lembra mais o que tinha que fazer. Coloca o celular no bolso e sai pela casa à procura do tal que não sabe onde o deixou. Passa a procurar a chave do carro e acha o celular no bolso, mas aí não sabe mais onde está a chave do carro. Velhice? Coisa nenhuma! Todos se esquecem um pouquinho das coisas.
Seu Juventino gostava de lembrar seu tempo no Exército. Tempo bom era aquele! Corrida por três horas a fio pelas ruas comandando um pelotão de rapazes fortes e saudáveis. Subindo e descendo morros. Pulando obstáculos e caindo no rio para travessia a nado. E ele não cansava, dizia, os jovens sim.
Nunca falava sobre sua doença. Não gostava. Afinal, fora ela, a doença traiçoeira, que o deixara fora da vida por quase dez anos. Dez anos de sofrimento.
Quando ele morreu, fiz um pequeno poema em sua homenagem. Dona Norma mandou inscrever na lousa de seu túmulo. ‘Ele vai ficar feliz’, disse-me ela. Assim espero. Porque lá em meu poema, eu disse o quanto era importante ser velho e sábio como ele fora. E que amigos não se escolhe pela saúde, cor ou religião, mas pelo conteúdo da alma.
E velhos não são os que têm muita idade. Velhos são, os que não acumulam sabedoria. Em qualquer idade.