Minhas viagens

Crônicas escritas nos anos de 1996 a 1998.
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Minhas viagens – Acre


Fui ao Acre para uma pesquisa com tribos indígenas da região. Na época de minha passagem pela cidade de Feijó, ainda não havia muito asfalto, nem um comércio significativo. Mas o trabalho que a equipe ia realizar era mesmo no interior.
Saímos da pequena cidade rumo à Aldeia dos Índios Ashaninkas, um dos pontos ao longo do Rio Envira onde aportaríamos para realizar nosso trabalho. Fizemos longas horas por caminhos de terra batida que o povo local chamava de estradas. Viajamos em grandes barcos para podermos transportar nosso veículo pesado, especial para aqueles trechos, até chegarmos à aldeia principal. Uma verdadeira odisseia.
Fomos recebidos pelo Cacique com muita cordialidade.
A história desse povo tem suas raízes nos Incas, e deles ainda cultivam a maneira de vestir, morar e se alimentar. A cordialidade e hospitalidade são suas características principais. Além de ser uma nação de gente bonita.
Como chegamos quando o sol já se punha no horizonte, decidimos deixar o início dos trabalhos para o dia seguinte. Armamos nossas redes debaixo de algumas frondosas árvores próximas às cabanas dos indígenas. As visitas sucediam-se sob a luz de archotes e lanternas. Ora era um grupo de meninos e meninas, ora alguns rapazes ou moças, todos curiosos para ver o que faziam ali aquelas pessoas com uma parafernália imensa de máquinas e apetrechos esquisitos.
Quase oito horas da noite, chega o cacique todo paramentado para nos oferecer sua hospitalidade. Convidou-nos para nos aproximarmos das cabanas, onde, em sua frente, queimava uma grande fogueira. A vila toda estava presente. Serviram-nos uma refeição à base de caça e pesca, com uma bebida feita de raízes parecida com cachaça.  Agradeci a bebida, pois sou abstêmia, mas comi da refeição, que por sinal estava deliciosa.
Os festejos para os visitantes prolongaram-se. E meus companheiros aproveitaram da gentil hospitalidade, exagerando nas cabaças cheias da tal bebida caseira regiamente oferecida. Ao verificar que a festa ia longe, fui deitar-me na rede e olhar as estrelas por entre os galhos folhudos. Logo adormeci.
No dia seguinte acordei cedinho. Olhei em volta do acampamento e caí na gargalhada. Ao pé de uma árvore o motorista da equipe estava de quatro, com o rosto por entre as raízes, numa daquelas posições de perder a guerra. Mais adiante, o geólogo, deitado de bruços fazia companhia a um monte de esterco de algum animal desconhecido. Próximo às cinzas da extinta fogueira, estava a pesquisadora minha companheira, com o jeans e a blusa emporcalhados sei lá de quê.
Não conseguia parar de rir.
O tempo estava armando um temporal, daqueles que só naquela região acontecem. Folhas voavam, galhos caíam, nossas redes rodopiavam. As mochilas que penduramos com nossos pertences nos galhos das árvores, queriam alçar voo junto com os pássaros que esbaforidos fugiam para locais ignorados. E nada dos valentes bebedores acordarem. Tomei a liberdade de despertá-los com um bom balde de água nas fuças. Pensado e logo feito. Um por um foram acordando assustados, e a água levou o resto da carraspana embora. A chuva torrencial caiu sobre nós e tudo mais, com a força de um furacão oceânico, embora estivéssemos a milhas de um deles. Um índio veio correndo debaixo de um imenso galho de palmeira servindo de guarda chuva, e nos chamou para uma das cabanas. Encharcados aceitamos a hospitalidade, porque com aquele aguaceiro não havia jeito de trabalhar. Por lá ficamos durante três dias até a chuva amainar, o que deu tempo mais do que suficiente para a pesquisa sobre essa Nação fantástica. E garanto que a bebidinha amarela dos hospitaleiros Ashaninkas correu solta.
Ao partirmos para concluir nosso trabalho em outras aldeias, um dos guapos ‘guerreiros’ de nossa equipe já estava quase de casamento marcado com uma bela indiazinha. E eu levava um colar e uma pulseira de sementes, presente do povo especial que nos hospedou, e que guardo até hoje.
Neste nosso Brasil Continente, tantas raças, tantos costumes, tantas línguas, são a riqueza de uma nação de coração aberto, onde em alguns lugares, a falta de tudo nos faz pensar que não precisamos de nada.

 

   
A seringueira. Uma das riquezas exploradas pelos indígenas Ashaninkas às margens do Rio Envira.

 
                                                      Cabanas hospitaleiras sobre pilotis.

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Minhas Viagens – Bahia


Estive na Bahia várias vezes e visitei muitas cidades por lá. Conversei com gente da Capital e do interior. Todos uma alegria só. Baiano tem o coração no olhar e a alma nas mãos. São poetas, conversadores e amigos. Alguns despintam, mas se você olhar bem vai ver que não são baianos nativos. Os de lá são hospitaleiros, alegres e comunicativos.
Genivaldo mora numa pequena e escondida cidade do sertão baiano. E escreve bem como ele só. Tem uma caligrafia de fazer inveja às fontes do Word. Seu português é para Aurélio nenhum colocar defeito. Tem ligeireza no pensar quando alguém lhe pede para escrever uma carta, seja ela de amor ou de negócios. Por isso todos os analfabetos da redondeza vêm até ele, ora para pedir uma carta para seu amor, ora para escrever ao compadre que mora em São Paulo. Mas quando ele fala! É um despropósito! Por pura curiosidade fui conversar com ele um dia que passava por seu vilarejo:
- Olá, Seu Genivaldo!
- Bas tard dona!
- Seu Genivaldo! O senhor escreve muitas cartas?
- Ó xent moça!  Si escrevu! Tanta qui si a sinhóra juntá as letra delas tudo, dá pra dá umas deiz mir vorta na terra. Ora si dá!
- Gostaria que o senhor me fizesse uma trova, dessas que rola aí pelo nordeste. Disseram-me que o senhor é um grande poeta. Pode ser?
- Podi sim sóra!
E em menos de um minuto fez uma trova, com uma caligrafia caprichada, e sem nenhum erro.
A trova foi assim:

Clarinha mora na roça

Nenhum homem ela namora.

Não se deve fazer troça

Senão ela vai embora.


Pedi então para ele ler a trova. Saiu assim:


Clarim mór na róça

Ninhum óme el namór,

Num si dev fazê tróça

Sinão el vai simbór.


Perguntei se podia ficar com a trova. Ele disse que sim, que era minha e podia fazer dela o que quisesse. Resolvi compartilhar a sabedoria de Seu Genivaldo.
Nessa nossa Bahia de Todos os Santos e de todos os poetas, a beleza da simplicidade nos dá lições de cordialidade e carinho em todo lugar.


Quem disse que no Nordeste só tem secura? Cachoeira Palmital, um Oásis no sertão baiano.

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Minhas Viagens – Amazonas
- Vai um açaí aí, moça?
A voz era de uma menina de uns doze anos, visivelmente índia. Aceitei a oferta, pois estava com sede e fome. Viajara por terra quase três mil quilômetros com apenas uma noite de descanso. E o calor pegajoso de Manaus me deixava incomodada.
Meu destino era um lugarejo às margens do Rio Negro, onde eu precisava chegar antes da tarde quente findar. A viagem daqui para frente seria de barco.  Já havia visitado aquele Estado anteriormente e conheci muitas cidades. Todas absurdamente longe uma da outra.
Enfrentando o calor e a garoa fina que em nada amenizava a quentura da travessia, o barco seguia rasgando as águas escuras rumo ao norte do Estado. Bem à tardinha chegamos ao lugarejo trepado em palafitas. Todas as pessoas estavam nos tablados alagados pela chuva que há essa hora caía torrencialmente.  Não eram muitas as pessoas, porque lá só moravam alguns pescadores, gente que sobrevivia tirando da água o que comer e o ganha pão.
A chegada do barco era para eles um acontecimento à parte, porque ali só aparecia alguém num barco daquele tipo, quando vinham trazer remédios, ou então algum vendedor ambulante. Aliás, naqueles rumos eram muitos deles.
Fui recebida pelo líder daquela gente. Um jovem de uns trinta anos, seguramente pertencente a alguma tribo indígena. Seu nome era Ramon.
Sentados debaixo de um girau para ficar um pouco a salvo da água que caía como um dilúvio, ele contou a história daquela pequena vila.
Seu pai, um índio criado na selva matuta, fora o fundador do lugarejo. Fincara os primeiros paus no leito do Rio que lhes dava alimento, para proteger a família das feras que transitavam pelos arredores. Era mais seguro que na floresta. Com o tempo outros foram chegando. Índios e caboclos trazendo suas famílias, porque reunidos se sentiam mais fortes.
A conversa ia animada quando ouvimos um barulho esquisito. Olhando para o lado assustei de verdade. Devido à elevação da água pela chuva torrencial que caía, a altura que separava as casas do leito do rio diminuíra sensivelmente.  E com isso, um enorme e cascudo jacaré pulou para a passarela que unia as casas entre si. Imediatamente dois homens correram para jogar o bicho na água novamente. O animal debateu-se e não queria de jeito nenhum sair dali.  E na luta arrancou a calça de um dos homens, que por não estar com nada além da calça surrupiada pelo jacaré, ficou como veio ao mundo. No sem jeito que lhe veio pelo acontecido, atirou-se na água barrenta e nadou por baixo das palafitas até chegar à sua casa. A tarde virou risos enquanto o pobre rapaz se escondia.
Concluído o que tínhamos a fazer, saímos do lugarejo já noite. Fomos para o hotel, que fica há quase trinta quilômetros do local onde estávamos. Um contraste gritante.
As palafitas dos pescadores do rio Negro.
 
Hotel em palafitas distante sessenta quilometros de Manaus.
Coisas do nosso mundo que só Deus consegue entender.
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Minhas Viagens – Maranhão
Ao chegar a São Luis, capital do Maranhão, fui recebida pelo calor sufocante e úmido daquela cidade linda. Também pelas pessoas, que no seu falar diferente, puxando os erres longamente, me deram as boas vindas, também com calor. Saí sozinha para ver a beleza de seus casarões antigos tombados pela UNESCO. Andando pelas ruelas dos bairros mais velhos, parece que estamos naquelas cidades interioranas da França. Isto porque a colonização francesa fala alto naquela região.
No dia seguinte de nossa chegada à Capital Maranhense, saímos do hotel rumo a uma pequena cidade onde teríamos um encontro de trabalho. O veículo que nos transportava era uma camioneta daquelas com tração nas quatro rodas, mais pesada que o ar uns milhares de vezes, inclusa a tralha toda de equipamentos necessários para as pesquisas que iríamos fazer.
A rota era pelos areais do deserto brasileiro que fica nos Lençóis Maranhenses. Lindo de se ver, mas quase se morre pelos quarenta e dois graus de sol queimando a pele como água quente. Nós, branquelos, ficamos como pimentões, pois o calor que ia dentro do carro assava qualquer coisa. Nos tornamos legítimos peles vermelhas.
Repentinamente atolou o possante traçado nas quatro rodas. Quem diria! Lá fomos nós tirar equipamentos, malas e tudo que pudesse pesar da caçamba. E é claro, incluindo todos nós. Só o motorista ficou na cabine dupla. Como tirar o peso não adiantou em nada, passamos a empurrar e tentar levantar as rodas traseiras que estavam mais atoladas. Após sobre-humanos esforços conseguimos, com a ajuda de algumas correntes de elos enormes, fazermos uma espécie de apoio para o pequeno gigante, que urrando, saiu aos pinotes pelo areão.  Nós correndo atrás carregando a tralha toda. Se não fosse trágico, seria hilário. Quatro seres irreconhecíveis, com bolhas de queimadura de sol por todos os locais do corpo que não estavam cobertos, seguiam a trilha quase invisível na areia branca.
Quando chegamos ao local do encontro causamos comoção. Alguns riam, outros ficaram penalizados. Não sei a qual dos dois grupos xingar mais. Uma senhora, dona do hotelzinho onde nos hospedamos, preparou uma espécie de pomada para passarmos nas queimaduras. Coisa milagrosa. Fedorenta, mas eficiente. No dia seguinte nada mais doía. Ainda estava feio. Mas não sentíamos mais dor.
Meus colegas e eu seguimos adiante após o trabalho concluído. Passamos pelas cachoeiras dos Lençóis. Coisa de cinema. Um Oásis de tirar o fôlego. Compensava qualquer queimadura. Foram muitas lagoas e chapadas ao longo de nossa jornada. Nada mais gratificante.
A Divina Inspiração fez daqueles lugares algo que não se consegue explicar em palavras. Só vendo. A Chapada das Mesas em nosso caminho foi algo para restabelecer nosso amor à vida.


 Chapada das Mesas
 
Lençóis Maranhenses visto de helicóptero.
 

Cachoeira na Chapada das Mesas
Se não acreditasse na existência de Deus, essas paragens fariam acreditar.
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Minhas Viagens – Roraima
Em Boa Vista tudo é bonito. E o forró reina solto pelas noites quentes nos bares a beira do Rio Branco, que na seca (outubro a março), vira um balneário. São diversas praias ao longo do rio, algumas com infraestrutura de causar inveja aos grandes centros.  
Foi também a trabalho que por lá passei. E como de costume, nossa missão era nos confins dos sertões chuvosos, a procura de umas tribos indígenas que por lá viviam, e vivem até hoje. Os chamados Tuchawas, representantes das etnias Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona.
A tribo que iríamos visitar pertencia ao povo Ingarikó. Uma gente que vive da caça, pesca e artesanato, vendendo cestos feitos de ‘cipó titica’ e fibra de ‘arumã’.  As línguas felpudas da região diziam ser um povo perigoso.
Nossa caravana embrenhou-se seguindo pelas margens do rio, em trilhas feitas por animais, até chegarmos à primeira das vilas, ou malocas, como são chamadas por lá.
Na verdade estávamos receosos. Levamos a sério a informação que nos foi dada da periculosidade dos índios da região. Esta fama vinha por causa dos garimpos em suas terras, e os ‘não índios’ que por lá andavam, não eram bem recebidos.
Quem veio ao nosso encontro foi um padre. Ele nos acolheu em sua casa, nos deu o que comer, e posteriormente nos apresentou ao Chefe. De cocar e tudo. Após as apresentações e comunicado nossa tarefa a cumprir, ele, o chefe, quis acompanhar a equipe em todo o trabalho. O padre foi cuidar de suas obrigações.  E depois de algum tempo, um jovem colou em mim. A cada lugar que eu ia, o esbelto moreno se fazia presente. E olha que não era só eu que precisava de tradutor. Mas o tal moço parecia pretender estar comigo para maior ‘segurança’. Ficamos dois dias por lá. E embora eu houvesse enfatizado ao ‘bondoso’ rapaz que não era necessária sua presença, a teimosia o fazia perambular de maloca em maloca ao meu lado.
Após o término do trabalho, o padre e sua equipe nos proporcionou um almoço de despedida. Alguns branquelos perdidos em um mar dourado. Porque a tribo toda é de um bronze espetacular. E junto a mim postou-se o moreno esbelto. Mas quem não gostou da ideia foi a esposa do jovem meu acompanhante. Veio com jeitinho, e foi me empurrando para o lado como quem não quer nada, e sentou-se no lugar onde eu estava.
Na constituição familiar dos Ingarikós, os casais que ainda não possuem filhos, a esposa fica com os pais, e o esposo a visita regularmente. Quando os filhos nascem, constroem uma casa (maloca) e então outra família se forma. No caso específico do índio em questão, a família já era constituída. E o mico por mim caçado, foi gratuito, já que a insistência do tal em me prestar ‘apoio moral’, não foi solicitado nem aceito de bom grado. Mas vá lá, nós dependíamos da boa vontade daquela gente, que diziam ser perigosa, para que o trabalho se fizesse a contento. E como disse um amigo da equipe, o rapaz não era bobo nem nada. Ele iria querer acompanhar os marmanjos?
Agora pense em um povo cheio de energia e alegria. Perigosos? Em todos os momentos foram excepcionalmente atenciosos.
Aldeia Ingarikó - Serra do Sol
 
Em Boa Vista –  esta formação rochosa até parece feita pela mão humana, mas não, foi o vento mesmo.
 
Um bom trecho percorrido.

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Minhas Viagens – Pará
Naquele dia de sol abrasante cheguei a Belém do Pará. Minha missão, a princípio, era levar a cabo uma ferrenha disputa entre empregado e empregador que já vinha se arrastando há algum tempo. Não tive muito trabalho com isso, fiz o que tinha a fazer, ganhei a causa e saí para o abraço.
Aí veio o melhor. Aproveitar um passeio até o momento de tomar o avião de volta daí a dois dias. Mas a cidade estava em verdadeiro fervor. Polvorosa seria o mínimo. Era época de uma famosa e grande procissão que se faz todo ano na Capital Paraense. A procissão do Círio de Nazaré.
Fiquei curiosa porque, onde passasse encontrava pessoas de todo lugar do Brasil e de diversas partes do mundo. Uma miscelânea heterogênea de dar inveja até para a torre de Babel. 
No hotel onde estava hospedada precisei dar informações, pelo menos a trinta pessoas, que queriam saber para onde ir com segurança ao local onde se iniciaria o evento. Fiz o que pude, mas também não sabia muito bem onde seria. Pensei: ‘Também vou lá. Quero ver o que isso vai dar’.  E segui a maioria, que com toda certeza me levaria até onde queria ir. Vi muitas procissões em minha vida. Mas nada que se comparasse àquilo.
Uma verdadeira multidão. Os mais díspares espécimes da raça humana. E lá estavam, inclusos no aparato, alguns cães e gatos. Coisa de se pensar. O que fariam esses animais por ali, já que não sabiam rezar, e penso eu, nem saberiam o que isso significava? Resolvi acompanhar um deles por pura curiosidade e nada melhor a fazer. Soberbo cão preto e castanho, de raça indefinida, provavelmente uma mistura singular. Raça pura ele não era. Devia pertencer a alguém, pois estava de coleira. Mas era lindamente pintado e de olhar pidão. Isso bastava. Ele ziguezagueava por entre as pernas das pessoas, e parecia ter um destino definido. Fui, com muita dificuldade, seguindo o animal pelas ruas. A procissão estava já algum tempo andando, e por isso, algumas vezes, pessoas impacientes me xingavam por eu estar ‘furando’ por entre elas. Mas nada me impediria de ir ver o que um cão faz em uma procissão. Eu estava derramando suor, meu chapéu já não atacava nada, o sol estava de uma quentura digna de outro local bem mais indigno. Mas lá estava eu, determinada como Salomão.
De repente o belo animal parou, farejou o ar, olhou para o meu lado como se entendesse que eu o seguia, e virou por uma rua onde não havia tanta gente. ‘Caramba – pensei - será que ele sabe que o estou seguindo?’ Continuamos. Agora estávamos lado a lado. Ele virava por uma esquina e outra, e eu junto. Finalmente ele parou. Estávamos diante da bela Catedral de onde a imagem de Nossa Senhora de Nazaré saíra. Havia um verdadeiro tapete de pétalas de flores amarelas. O bichinho sentou, me olhou, e se enfiou por entre as pernas das pessoas que ainda estavam por lá, centenas delas, e desapareceu. Fiquei ali a olhar para as torres brancas luzindo ao sol. Nesse instante, compreendi que fui levada até lá, porque precisava ouvir o canto que a multidão entoava: “Abra bem as portas do seu coração, e deixe a luz do céu entrar”.
Voltei para o hotel com a mente e a alma cheias da luz que emanou daquela tarde. E minha fé em Deus, que andava meio abalada, por obra e graça de um ser de Sua criação, voltou a me acompanhar.
Por algum motivo eu estava lá, naquele dia, naquela hora, e segui aquele cão.
Coisas que existem entre o céu e a terra, que nem Freud explica.
 
As torres da Catedral da Sé em Belém, onde se inicia a procissão.
Pessoas anônimas em sua caminhada, carregando a corda na procissão.
 É preciso ter fé.
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